Transforma Música

[Entrevista] Yantó

O artista queer mineiro fala sobre "Sítio Arqueológico", o terceiro álbum de estúdio da sua carreira, e como enxerga a produção artística queer no Brasil
Gustaveo Lemos e Alma Negrot 05

Texto por Ali Prando
Fotos de Gustavo Lemos & Alma Negrot

Na reta final de 2023, o cantor e compositor mineiro Yantó lançou seu terceiro álbum de estúdio. Sítio Arqueológico é uma experiência sonora que desafia as normas convencionais brasileiras, fundindo instrumentação tradicional com música eletrônica e sintetizadores. Com uma produção minuciosa e letras profundas, ele nos convida a uma jornada íntima e autêntica, compartilhando suas experiências pessoais sobre desidentidade e não-monogamia.

Sua sensibilidade e autenticidade resplandecem em cada nota e verso, tornando este disco uma peça fundamental na conversa sobre diversidade em seu sentido mais amplo no cenário musical. Ao Transforma Música, Yantó abre seu universo artístico e detalha a mensagem inspiradora que seu disco traz, consolidando-o como um representante ousado e autêntico na cena musical contemporânea.

Para ler ouvindo:

[Transforma Música] “Sítio Arqueológico” é o seu terceiro registro de inéditas. Como foi o processo criativo desse álbum em particular e de que maneira você acredita que ele se distancia, se diferencia dos outros álbuns?

[Yantó] Foi um processo bem intenso, longo. Acho que nenhuma imagem poderia ser mais certeira do que a figura de alguém que escava cuidadosamente um sítio arqueológico. Em julho de 2020 eu entrei num processo bem imersivo de composição. Fiquei durante alguns meses compondo coisas todos os dias. Eu estava morando a maior do tempo em um sítio em Minas Gerais, a terra onde minha mãe nasceu e cresceu, onde a minha avó morreu. Então foi um processo muito intenso, em todos os aspectos. No fim do ano eu tinha umas trinta canções. Depois fiz uma produção de algumas dessas faixas, produzindo tudo sozinho no meu estúdio caseiro, com programações eletrônicas, sintetizadores, piano, vozes, e usei alguns samples para rascunhar ideias que depois seriam gravadas por instrumentos “de verdade”. Essa produção solitária durou quase dois anos. Quando já tinha um quase disco levantado, convidei o Tó Brandileone pra entrar no processo e trabalharmos juntos em cima desse material. Ele foi um interlocutor e parceiro muito importante, aprimoramos algumas escolhas, convidamos outres musicistas para gravar os instrumentos acústicos, regravamos as vozes principais. Ele trouxe um refinamento muito rico para os timbres e também fez a mixagem. Além da parte sonora, teve posteriormente o processo visual com Alma Negrot, que foi uma outra camada importantíssima do disco. Eu trouxe algumas referências, alguns pontos de partida, ele somou com as ideias dele e fez uma direção criativa brilhante para toda a construção visual do trabalho. Acho que esse é o álbum melhor e mais maduro que já lancei. Sinto que meus discos anteriores foram uma espécie de escola para fazer esse. Nos anteriores sinto que eu estava tentando ser alguma coisa fora de mim. Nesse não teve isso. Eu fui fazendo, sem buscar muito um lugar onde eu queria chegar.

Desde que você começou a sua carreira, o mercado da música mudou radicalmente. Estamos na era das plataformas de streamings e algoritmos. De que maneira esses formatos influenciam e afetam o seu trabalho? Enquanto artista independente, quais são as dores e as delícias de produzir nessa era?

Eu sinto que tem um lado legal desse momento que é o fato de todo mundo poder fazer sua música e colocar no mundo. Então é muito mais acessível. Isso de poder produzir um disco no próprio quarto com uma qualidade técnica alta, como tanta gente faz hoje em dia, é algo muito recente. Tem a delícia de podermos ser mais livres e criativos, sem aquele “taxímetro” do estúdio e a coisa de termos uma certa independência na hora de compartilhar essa música. Por outro lado, as velhas estruturas já se apropriaram da dinâmica que faz a roda girar. Então, a ideia de que só as plataformas e as redes sociais vão fazer sua música chegar nas pessoas é muito utópica, pra não dizer mentirosa. Se você entra por exemplo em uma playlist editorial de “novidades da música” de uma plataforma qualquer, não é raro ver ali várias músicas de um mesmo artista, quando na verdade essas playlists deveriam ser um canal para a descoberta de novos e diferentes artistas. Eu me pergunto: que curadoria é essa que não banca um artista que tem poucos plays? Porque gente fazendo bons trabalhos tem aos montes! Outra coisa, esse discurso de que tem de lançar single ao invés de álbum. Acho uma grande balela. Porque pra mim o formato de lançamento de um trabalho precisa ter a ver com o conceito do trabalho. Se conceitualmente faz sentido ser um single, ótimo. Se é um álbum, que seja um álbum. Por fim, a gente sabe que tem as coisas que o algoritmo gosta. Gente pelada, por exemplo. Amo gente pelada também, é uma delícia. Agora isso ser algo “mandatório”, acho triste. E de que maneira isso afeta o meu trabalho? Eu tento não me pautar nisso para fazer minhas escolhas artísticas, mas me afeta muito num âmbito emocional. Porque é muito angustiante fazer um trabalho que tem tanta coisa envolvida, tanto tempo, tanta dedicação, e ter de lidar com essas estruturas tão limitantes na hora de colocar esse trabalho no mundo.

Seu álbum tem diversas influencias como Björk, Meredith Monk e até mesmo Caetano Veloso. Como você dialoga com esses artistas? E como esses trabalhos te influenciam?

Primeiramente, eu preciso dizer que fico muito feliz que você tenha percebido essas influências, pois essas três pessoas são artistas que de fato me inspiram muito. Eu sinto que a Björk me abriu muito os horizontes nesse campo da produção musical. Essa interface que ela faz entre o pop e o experimental sempre me interessou muito, e nela eu sinto que encontrei um caminho para conciliar esses dois impulsos que eu também carrego dentro de mim. A Meredith tem essa coisa ancestral da voz, a voz que vai por uns caminhos inusitados. Eu sempre me emociono muito com ela, ela me toca a alma. E o Caetano é meu muso, meu ídolo. Eu só sou compositor porque existe Caetano. Eu aprendi a compor com ele. Ele tem essa coisa sofisticada nas letras, muito poético e ao mesmo tempo cotidiano, humano, vulnerável, e uma busca pela beleza, uma busca com a qual me identifico. E eu adicionaria ainda a Kate Bush, que também é um norte pra mim, uma artista muito íntegra, que tem uma irreverência muito consistente que também é uma busca minha.

Quais desafios ou obstáculos você enfrentou como artista queer e como os superou?

Eu sinto que os desafios no meu caso foram especialmente internos. Eu sinto que a coisa inclusive de ter a segurança de ser compositor e produtor musical foi algo conquistado de forma bem mais dura do que percebo no processo de meus amigos homens cis-hetorossexuais. A gente que é dissidente é questionado desde que se entende por gente e por isso carrega uma insegurança constante. Como se tivéssemos de provar o tempo todo que somos bons, que temos autoridade para fazermos o que fazemos. Então bancar esse lugar de compor e produzir, quase sempre ocupado por homens brancos cis heterossexuais, foi um processo bem difícil pra mim. Eu nunca me sentia suficientemente bom, e até hoje não me sinto, mas liguei uma espécie de foda-se.

Na útlima década, vivemos uma espécie de boom (também impulsionado por marcas) de artistas LGBTs fazendo música no Brasil, e de certa forma mudaram-se os corpos que cantavam as músicas, mas não conseguiram mudar exatamente a estética dos trabalhos – que ainda tem as mesmas métricas, composições, repertórios e timbres tradicionalmente tropicalistas. O que significa ser um artista queer e deslizar musicalmente por camadas e timbres mais ousados?

Sabe que isso é algo que eu penso desde que rolou esse boom? Eu não sei a resposta, mas eu penso muito nesse lugar do queer como uma atitude diante de tudo. Queer como algo que não se deixa estabilizar, que não tem uma estética pre-definida. Tenho pavor de reduções. Acho que a Tropicália foi e é um norte porque naquele momento ela foi de certo modo um movimento queer. Assim como depois o pessoal da Vanguarda Paulista também foi, e tantos outros que vieram depois. Acho que o problema é ficar preso no pastiche de uma estética. Mesmo sintetizadores, vocoders, isso é coisa dos anos 80, autotune dos anos 2000. Pode ser inovador e pode ser careta, depende muito do contexto e da forma que for feito. A coisa em si não é nada. Ela é em contexto. Talvez um trabalho de voz e violão possa ser tão queer quanto um trabalho de música eletrônica. Sinto que uma arte queer será sempre uma espécie de recusa ao sistema vigente, às binariedades, às monoculturas. Então, se todo mundo estiver fazendo eletrônico, talvez ela será acústica. Não tem linearidade.

O que você gostaria que as pessoas soubessem sobre você que elas ainda não sabem?

Acho que elas não sabem muitas coisas sobre mim. Eu também não sei (risos). Mas gostaria que elas ouvissem meu disco, pois lá tem muito de quem eu sou hoje, em 2023. E sinto que talvez seja algo bem diferente do que elas já ouviram nos meus álbuns anteriores.

Ali Prando é filósofo e multiartista. Pesquisador com as temáticas de corpo e tecnologia, gênero e sexualidade, já apresentou suas perspectivas teóricas nos principais polos culturais do país, entre universidades e instituições culturais, interseccionando aspectos da cultura pop com teorias criadas por autores como Paul B. Preciado, Achille Mbembe e Judith Butler. Enquanto artista, lançou recentemente seu primeiro álbum musical, “GLITCH”, onde narra a história de uma inteligência artificial que passa a se questionar depois de entrar em contato com humanos.