Transforma Música

Entendides: eu lírico queer na música brasileira contemporânea

A música brasileira saiu do armário e os eu líricos são um babado!
Viridiana (Stella Michalski)

Por Wagner Rodolfo (Waguinho MPBDoll)

Um mundo sem referências é um mundo sem possibilidades de existências. Lembro da primeira vez em que soube que um artista era gay: um tio falava, com um certo deboche, sobre o talento de Ney Matogrosso e toda sua “pinta”, “apesar de”, num misto confuso de preconceito e admiração. É curioso escrever aqui como uma pessoa que pegou muitas mudanças de representações e diversas evoluções no debate — não haviam tantas referências LGBTQIAP+ (na época, falávamos GLS, risos) contemporâneas no ensino médio, ali por volta de 2011, mas lembro de pipocar referências no segundo e terceiro ano da faculdade, entre 2015 e 2016 com Jaloo, Leo Fressato, Liniker, As Baías (na época, acompanhadas da Cozinha Mineira), Linn da Quebrada, Davi Sabbag, Mel, Mateus Carrilho, Yantó (antes Lineker), entre outres.

É possível ser uma artista assumidamente LGBTQIAP+ (apesar do preconceito, apesar de exclusões em alguns circuitos, apesar de muitos pesares) e cantar sobre isso (ou não). Penso que, em uma época não muito distante, era preciso utilizar certas metáforas para dizer o que seria “proibido” ou o que poderia ser censurado, como Renato Gonçalves trabalha em “Elas Duas”, livro de 2016 onde cita o sutil “jogo de damas” da canção “Valeu”, de Marina Lima, ou — como ele diz — o erótico “vermelho de horizontes distintos” em “Ciúme de Mim”, de Claudia Dorei. Gonçalves comenta que essas referências só são compreendidas por quem é “entendido”, termo utilizado por muito tempo para denominar o indivíduo homossexual.

Mas e os artistas contemporâneos? Quem são os artistas queers, com eu líricos queers, que, com (ou sem) a necessidade de frisar essa dissidência, falam de amores, inquietações, partindo de uma voz queer? 

Um grupo que você precisa ficar de olho é o D’água Negra. O trio manauara, que mistura influências do Jazz com música eletrônica, oscila entre o elegante e o bagaceira com muita classe. Lançaram um EP em 2021, o “Erógena” (2021), trabalho que passa por assuntos desde o caos pandêmico (e o descaso do antigo governo com o país), até outras subjetividades do grupo. Vale destacar que os três integrantes — Melka, Clariana e Belch — são pansexuais.

Observemos a canção “Yoga Gota Boca Ardente”: “Imagina quando você tá começando a conhecer aquele cara, é o primeiro encontro, aí tu entra no ‘apê’ dele, ele fica te olhando e tu olha pra ele, é tarde, é  tarde, eu acho que tá uns 34 graus lá fora, tua pele tá até um pouco meio oleosa”. A letra, ora cantada ora declarada, é como um áudio-ensaio. É interessante perceber que o início se dá com o eu lírico conversando com uma amiga sobre uma situação hipotética, mas, em determinado momento, fica tudo na primeira pessoa, como se ele estivesse falando com o boy. A voz bicha, descrevendo diversas imagéticas, vai seduzindo o ouvinte. A canção parece muito com um episódio que você viveria no Grindr: “Tu sabe que еle não é flor que se chеire. Aí tu olha assim pra ele, meio que de canto, e fala: ‘a saliva, o gosto, o gozo, o sopro que escorrega dessas tuas palavras aí me intriga, sabia?’”.

D’água Negra (Louise Amendola)

Bruno Belchior, o Belch, conta que “Yoga Gota Boca Ardente” é uma música que nasceu no período pandêmico, sendo inclusive a primeira música do grupo. “Eu estava no quarto, enlouquecendo, tentando dar conta desse corpo e dessa experiência de isolamento em meio a essa loucura. Já estava um pouco cansado de qualquer tipo de estimulação corporal que eu poderia ter, falando de tesão mesmo… Ele vinha, mas eu estava cansado de não conseguir sair para ver pessoas, ir para dates, com saudades disso, de conhecer uma pessoa pela primeira vez. Sempre gostei muito de primeiros encontros”. Essas vontades e sensações o inspiraram para escrever a letra (bem letruxiana – a pedido de sua parceira da banda) da faixa em cima dos beats que Clariana produziu, um house eletrônico e com certa nostalgia.

Belch diz ainda, sem pestanejar, que sua primeira referência queer na música foi Ney Matogrosso, por influência do avô que tinha muitos discos do artista. “Sempre fiquei instigado pela teatralidade, pela piração, pela provocação corporal que ele tinha”. O artista também comenta que, além dessa memória afetiva, os Secos e Molhados estão cada vez mais fazendo sentido para ele e até influenciando em alguns processos do grupo — mesmo depois de um bom tempo, uma referência queer pode reverberar de alguma forma no trabalho de outro artista queer. 

Nota do autor: considero o eu lírico de “Yoga Gota Boca Ardente” escancaradamente bicha, sem metáforas sobre ser “entendide” ou algo do tipo, mas trago uma outra canção cujo eu lírico descobri.

Outro exemplo é “Back in Bahia”, de Luiza Brina, que muitos interpretam um eu lírico apaixonado — “And all the love songs that I wrote for you will make sense” [“E todas as canções de amor que eu escrevi pra você farão sentido”] —, diferente do que a artista imaginou. Com uma carreira de mais de dez anos, Brina possui diversas canções-orações, que criou pois queria aprender a rezar. Mas para além dessas canções de grandes reflexões espirituais e existenciais, a artista possui algumas outras românticas, como é o caso de “Back in Bahia”, que demonstra a dor de um coração sapatão partido. “Eu estava em Morro de São Paulo e vivi um amor de verão que foi muito importante para minha vida, mas que ali na viagem eu tinha certeza que era só uma coisa passageira”. Luiza conta que rascunhou as canções do seu primeiro disco, “A Toada Vem É Pelo Vento” (2011), em um catamarã, depois de viver esse intenso romance de verão. Intrigante que, com essa informação, o eu lírico ganha mais força, como no trecho “And then you will notice you lost a great chance” [“Então você vai perceber que perdeu uma grande chance”] — quem nunca se sentiu assim depois de tomar um fora? 

A letra segue, em inglês: “Mas então, um dia, quando você estiver de volta na Bahia, vai escutar aquele velho disco de Maria (Bethânia) / Mas então, um dia, quando você estiver de volta na Bahia, vagando por aí, de mãos dadas com Maria”. Em uma leitura rápida, pode se interpretar que o amado estava andando de mão dadas com outra Maria, mas se tratava de uma amada. E soa ainda mais curiosa ao citar Maria Bethânia, uma referência que sempre teve um mistério em torno de sua sexualidade.

Luiza Brina (Alice Sposito)

Sobre suas primeiras referências LGBTQIAP+, Brina cita aquela que já havia sido mencionada na canção. “Quando era mais criança, não tinha tantas referências assumidas. Por exemplo, havia um mistério acerca da Maria Bethânia e da Gal, que era dito, mas era meio ocultado. Desde pequena, era muito fã das duas, e ficava com essa curiosidade, querendo saber se isso era verdade”, além de mencionar Cássia Eller, uma figura assumidamente lésbica.

Se antes havia muitos mistérios sobre sexualidades e gêneros, hoje vejo que a pluralidade de existências possibilita inúmeras referências queers na canção e, cada vez mais, temos, por exemplo, referências não-binárias nas artes. Essas referências estão aí há muito tempo, mas agora se posicionam dessa maneira, questionando o cis-tema.

Outro exemplo é Viridiana (foto de capa), artista trans-não-binária que vem construindo essa imagética queer desde o disco “Transfusão” (2021). Em 2023, a artista lançou a canção “Pérolas de Plástico”, que explora suas influências de house e disco em meio a vivências pessoas. “Eu sou a perdição com um cordão de pérolas de plástico, eu sou uma sereia travesti no meu império aquático”, ela canta.

A partir de si e de refletir o seu corpo no mundo, Viridiana nos apresenta todas as possibilidades de suas plasticidades ao cruzar a cidade de um ponto A até um ponto B. A artista conta que a canção surgiu de um dia que o Uber estava muito caro e, então, ela decidiu caminhar pelas ruas de Porto Alegre. Nisso, refletiu sobre a imagem construída entorno de uma artista pop independente enquanto caminhava, e o signo das “pérolas de plástico” veio à sua cabeça. “A expressão surgiu como uma coisa chique-fake, uma coisa pseudo-glamour e, ao mesmo tempo, essa imagem da pérola, para mim, remete a uma feminilidade muito tradicional”, diz. “Ela ser de plástico incorpora uma coisa que construo desde meus primeiros trabalhos como Viridiana, que é essa coisa de buscar uma plasticidade, uma coisa androide, fugindo dessa feminilidade tradicional”, arremata.

Há muita potência no que Viridiana evoca, pois eles apresentam um jeito de ser e existir distinto dos impostos pela norma: “uma sereia-travesti”, uma rainha, “vênus em revolução”. Sobre quais foram suas primeiras referências, ela de cara responde David Bowie e Madonna, figuras emblemáticas na temática “criar novas formas de ser”. A artista também comenta a importância de ter assistido à Laverne Cox em “Orange is the New Black”, uma figura tão representativa que chegou a ser a primeira mulher trans a inspirar a produção de uma boneca Barbie.

Contudo, o mais bonito na fala da Viridiana é saber que uma de suas grandes referências veio da própria família. “Quando eu tento resgatar essas primeiras lembranças, acho que estaria sendo muito desonesta se não falasse que a primeira pessoa que sentou e falou comigo sobre tudo isso foi a minha irmã mais velha, a Florença, que é uma mulher lésbica”. Viridiana conta que foi um processo muito difícil para a família, mas que, para ela, foi algo normal e conversado de uma maneira franca com a irmã. “De certa forma, minha primeira referência LGBT foi a minha irmã, e acho que isso é um baita de um privilégio, porque é uma pessoa que amo muito, uma pessoa muito próxima e uma pessoa que me ensina até hoje. Inclusive, ela é a designer do meu disco ‘Transfusão’, ela faz a maioria dos meus cartazes de shows, quem fez meu merchandising foi ela, então a gente está juntas até hoje! Tá vendo? Famílias LGTBs… Prosperando!”, enfatiza.

Há uma vasta lista de canções com eu lírico queer para nos aprofundarmos, como é o caso do trabalho de Bixarte, “Traviarcado” (2023), que coloca na mesa todas as questões da luta trans e traz à luz do debate, por exemplo, a luta dos homens trans em “Carta de Advertência” — “Que você me queria calado, sempre achando que meu corpo que tá enganado, mas pra ser um homem eu não preciso ter um falo, eu falo até não ter, mas você tá suicidado, eu não vou baixar minha cabeça não, vai se acostumar a ver transmac com mic na mão”. A faixa é uma parceria da artista com Julian, grande destaque da música independente da Paraíba, e Winnit, um dos maiores MCs de rap do Brasil. 

Também podemos falar de muitas outras canções, como “Quem Soul Eu”, de Linn da Quebrada — “Muito prazer, eu sou a nova Eva, filha das travas, obra das trevas”; em “Onda”, da Àiyé, não há disfarce para o eu lírico sáfico — “Cê fica mais linda sem essa onda de caça e caçador”; Deize Tigrona chama todas as gatas para o sururu das meninas — “Suruba das meninas, só entra dedo e língua”; Sophia Chablau e uma Enorme Perda de Tempo, levanta a bandeira bissexual com “I love meu jeito de bi”; Bruna Mendez canta em “Mapa” que “Me sinto segura entre seus seios”. Para além de inúmeras referências no eu lírico das canções, há também artistas que se tornam referências simplesmente por suas existências e seus trabalhos, em inúmeras expressões artísticas trans, sejam femininas, masculinas e/ou não-binárias, como Jáder, Ana Frango Elétrico, Klüber, JUPI77ER, Gabrelú, Venusto, Lindsey Vianna, Zerzil e Gali Galó.

Precisaríamos de páginas e páginas para analisar tantas canções e apresentar tantos artistas (quem sabe em outro texto), pois é uma lista interminável — descartando qualquer justificativa de festivais não encontrarem artistas LGBTQIAP+ para integrarem seus line-ups — o que não seria possível décadas atrás. Seja no eu lírico bicha de uma banda pansexual falando sobre um date, seja num eu lírico sapatão cantando a dor de coração depois de um amor de verão na Bahia, seja numa artista-não-binária cantando sobre o seu ser no mundo e suas pérolas de plásticos: é muito importante ter referências, é muito importante existirem inúmeras possibilidades de referências para inúmeras possibilidades de existências. Nem todo mundo tem a sorte de ter uma Florença na família. 

Geógrafo de formação, artista de coração, Wagner Rodolfo (ou Waguinho MPBDoll) pesquisa música brasileira desde 2012. Cria da Musicoteca, é ouvinte atento e não deixa passar um lançamento nacional sem seus comentários. Assessor de imprensa e produtor cultural no selo Dobra Discos, Waguinho já colaborou com o site Polvo Manco e escreve mensalmente para o portal de música guatemalteco El Timbre Suena.