Transforma Música

Sem medo de abalar: a efervescência musical da comunidade queer mantém viva a noite underground de São Paulo através das décadas

Essa movimentação contribui com a formação da identidade cultural da cidade e é atravessada por questões econômicas e sociais.
Kontronatura (Reprodução)

Por Renan Guerra

Em novembro de 1978, o Lampião da Esquina – primeiro jornal LGBTQIAP+ de circulação nacional – trazia uma histórica entrevista com a sambista Leci Brandão em que, entre tantas falas icônicas, ela era afirmativa ao dizer: “o sistema descobriu uma coisa: gay agora vende, dá bom lucro”. E parece que essa máxima só confirmou mais e mais real, por isso mesmo é que atualmente discutimos tópicos como o Pink Money, a exploração de nossas pautas por marcas e pelo mercado publicitário e buscamos, cada vez mais, entender como esse lucro pode chegar realmente aos nossos. E quando isso tudo envolve arte e artistas que estão as margens desse sistema mercantil, é preciso ainda mais atenção.

Nos últimos dez anos, a música brasileira passou por uma espécie de saída geral do armário e aquilo que era subentendido e que ficava não dito se mostrou escancarado. O mercado logo correu tentar surfar nessa onda: a geração tombamento, a onda de drags na música pop e mais uma série de ações demarca uma nova fase de se pensar a música de artistas LGBTQIAP+ no Brasil. De todo modo, antes de pensarmos no presente, é preciso voltar um pouco no passado, pois se tem uma coisa que a música brasileira sempre deu foi é pinta. Na mesma matéria lá de 1978 do Lampião, eles cunhavam o termo MPE – Música Popular Entendida.

Entendido (en.ten.di.do) adj
Aquele que é homossexual. Gíria brasileira para quem entende da homossexualidade.

A MPE poderia ser definida pelas músicas da própria Leci Brandão, falando sobre as suas experiências enquanto mulher negra e lésbica; poderia se aplicar também ao cancioneiro apaixonado de Angela Ro Ro ou as performances intensas de Ney Matogrosso. Existem muitos entendidos e entendidas na nossa história da MPB – quanto a isso, vale conferir o livro “História Sexual da MPB” (2006), de Rodrigo Faour. E aí se vamos para o underground, o Brasil sempre foi fértil picadeiro “das loucas e dos lazarentos”. Exemplo disso é a noite de São Paulo, que já foi palco de nomes fundamentais que apresentavam sua arte de forma pioneira. E aí não podemos esquecer de quem veio antes, como dois nomes importantes dos anos 1980: Claudia Wonder e Patricio Bisso.

Claudia Wonder nasceu em São Paulo em 1955 e já na adolescência começou sua transição de gênero, na mesma época em que passou a ser presença frequente no underground noturno. Atriz de cinema, fez diferentes trabalhos na Boca do Lixo e tem créditos em filmes assinados por diretores como Carlos Manga, Victor Di Mello e Alfredo Sternheim. Na década de 1980, Wonder era cantora punk, vocalista da banda Jardim das Delícias e seu show era o ponto de encontro dos modernos de São Paulo. O pessoal comia e bebia no restaurante Ritz, ali na Alameda Franca, e depois descia em debandada para o Madame Satã, onde viam Claudia Wonder fazer suas performances, incluindo a icônica apresentação em que ela se banhava nua numa banheira cheia de sangue falso. Coisas possíveis nas madrugadas daqueles tempos e que só existem na memória de quem viveu, pois há poucas gravações sonoras e visuais dessa fase.

Depois disso, Claudia fez tantas outras coisas: morou na Europa, foi colunista da revista G Magazine, lançou disco de música eletrônica, participou de peças de teatro e filmes e se tornou um nome fundamental do ativismo trans. Ela faleceu em 2010, aos 55 anos, mas em 2009 sua vida se transformou em um belo filme chamado “Meu Amigo Claudia”, de Dácio Pinheiro, de título homônimo da crônica escrita por Caio Fernando Abreu para ela. No texto, Caio resumia assim: “Meu amigo Cláudia é uma das pessoas mais dignas que conheço. E aqui preciso deter-me um pouco para explicar o que significa, para mim, ‘digno’ ou ‘dignidade’. Nem é tão complicado: dignidade acontece quando se é inteiro. Mas o que quer dizer ser ‘inteiro’? Talvez, quando se faz exatamente o que se quer fazer, do jeito que se quer fazer, da melhor maneira possível. A opinião alheia, então, torna-se detalhe desimportante. O que pode resultar – e geralmente resulta mesmo – numa enorme solidão. Dignidade é quando a solidão de ter escolhido ser, tão exatamente quanto possível, aquilo que se é dói muito menos do que ter escolhido a falsa não-solidão de ser o que não se é, apenas para não sofrer a rejeição tristíssima dos outros.”

Patricio Bisso era argentino, nasceu em Buenos Aires em 1957, mas assim como uma gama de pessoas, o artista escolheu São Paulo para ser seu palco e se mudou para cá nos anos 1970. Artista gráfico e ilustrador, Bisso começou a explorar no palco e na TV diferentes personagens femininas que lhe encantavam. Seu primeiro sucesso surgiu na Abril Vídeo (uma espécie de proto-MTV que existia da parceria da editora Abril com a TV Gazeta), onde sua personagem Olga del Volga, uma sexóloga russa, se tornou sensação. Olga seria um ícone oitentista e depois até ganharia presença cativa no sofá do programa da Hebe. De todo modo, Patricio Bisso virou sensação mesmo em 1985, com seu espetáculo “Louca pelo Saxofone”.

Apresentado nos palcos do Sesc Pompéia, a obra era marcada pelas múltiplas personagens de Bisso, que trocava 25 vezes de roupa, 12 vezes de perucas e apliques, e oito de luvas e sapatos. No show, ele cantava em cinco línguas: português, espanhol, inglês, francês e italiano, homenageando nomes diversos como Rita Pavone, Dorothy Lamour e Emilinha Borba. “Louca pelo Saxofone” virou disco, com participações luxuosas de Rita Lee e Wanderléa. O trabalho foi lançado em 1987 pela extinta gravadora RGE, até chegou a ser reeditado em CD em 2018 pelo selo Discobertas, mas ninguém mais tem CD, não é? E esse disco não se encontra nas plataformas digitais – essas coisas do nosso tempo em que tudo teoricamente está disponível e não está. Em 1985, Bisso foi até capa da Vejinha – aquela versão paulistana da Veja – com suas múltiplas personagens estampando uma deliciosa matéria assinada por Ruy Castro. Nos anos 1990, Bisso fez seus últimos shows pelo Brasil, até que nos anos 2000 retornou para sua terra natal, Buenos Aires, onde veio a falecer em 2019.

A música e a arte LGBTQIAP+ não são uma só

Essas histórias de dois personagens icônicos dos anos 1980 servem meio que para dizer que existimos desde sempre e estamos aí a criar e produzir. Nada nasceu em 2010 e, além disso, somos muitos e múltiplos. Nos últimos anos, se tornou comum no jornalismo cultural tentar criar um guarda-chuva de “música LGBTQIAP+” que segue apenas a lógica de considerar a orientação sexual e/ou a identidade de gênero do artista, quando na realidade são tantos artistas produzindo música em diferentes gêneros e propostas que reduzi-los a esse recorte serve apenas para diminuir as nuances e complexidades desse trabalho e colocá-los novamente em um gueto.

Quando se faz um recorte apenas regional e se pensa no cenário queer de São Paulo, podemos pensar em múltiplos nomes de artistas naturais do estado ou não que criam em diferentes frentes: temos a cena ballroom e seus DJs e MCs; temos criadores de música eletrônica da noite; artistas de funk das periferias da capital; nomes que ressignificam o sertanejo dentro do queernejo; rappers de flow poderoso nas batalhas de rimas; cantores e cantoras de MPB (ou MPE, como queira) e mais uma gama de possibilidades que não devem ser apenas demarcadas por suas experiências enquanto LGBTQIAP+. De qualquer modo, entender as especificidades desses artistas é também entender seus movimentos e suas ações quando se pensa nas vivências únicas de cada identidade.

Para pensarmos nisso, conheça abaixo cinco nomes pulsantes e interessantes de diferentes vertentes que habitam essa loucura que é a cidade de São Paulo:

Sodomita – Cria do extremo da Zona Leste de São Paulo, Sodomita é uma artista múltipla, que passeia entre a cena ballroom e os eventos de grime e drill, trabalhando tanto como MC quanto como chanter, a figura que é a mestre de cerimônia dos encontros de ballroom. É no rap e no funk que ela encontra subsídios para contar suas narrativas e é através das experiências com o ballroom e o vogue que ela se vê plena em sua identidade. Ano passado, Sodomita se apresentou no Boiler Room, programa gringo que disponibiliza sessions de música eletrônica na web, e é uma boa apresentação de seu flow e de sua força nas rimas para quem ainda não a conhece. Outro bom exemplo é a sua participação no Brasil Grime Show, ao lado de Sé da Rua e diniBoy. Suas experiências e vivências enquanto travesti negra viram versos fortes de uma artista que é intensa com o microfone na mão e uma doçura fora dos palcos.

Mia Badgyal – Mia Badgyal surge na noite paulistana como drag queen e DJ e é nesse processo entre lançamentos musicais e autodescoberta que a artista vai se transformando artística e intimamente. A cantora trans consegue resumir e apresentar toda a sua efervescência em seu recém-lançado disco de estreia “Emergência”, que foi produzido ao lado da dupla Cyberkills, e conta com a participação de nomes diversos como Jup do Bairro, Frimes e Carneosso (do Teto Preto). Badgyal tem na espinha dorsal de seu som a música eletrônica, mas aí nesse balaio entram diferentes vertentes dessas sonoridades, indo do technobrega ao eurodance, passando pelas refs da música pop latina atual, tudo amarrado em canções de embalagem pop e grudenta, que dialogam com a cena de música drag nacional, mas que ainda assim miram outros cenários sonoros e sensoriais.

Maria Beraldo – Maria Beraldo é cantora, compositora e clarinetista brasileira, já tocou com Arrigo Barnabé e Elza Soares e integra a celebrada banda instrumental Quartabê. Seu primeiro disco solo, “Cavala” (2018), é como uma experiência entre as canções de MPB e música eletrônica, num processo de mergulho em suas vivências enquanto mulher lésbica, falando sobre temas como paixão, descoberta e tesão. Artista múltipla e que está sempre em colaborações diversas com outros artistas da cena paulistana, Beraldo é também um nome importante das trilhas sonoras do cinema nacional: sua trilha original para o filme “Regra 34” (2022), de Julia Murat, é uma delícia tão despudorada e interessante quanto o ousado filme que fala sobre BDSM e raça. Seu mais recente trabalho é a trilha de “Levante”, de Lillah Halla, filme premiado em Cannes pela Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci).  

Kontronatura (foto de capa) – Kontronatura é um projeto iniciado em 2019 por Achille, DJ e produtor trans não-binário e residente de festas como a Mamba Negra. Kontronatura tem um olhar inesperado e interessante sobre a música eletrônica, buscando amalgamar todas as raízes negras desse gênero. Funk, dancehall, footwork e mais uma série de gêneros se embrenham em seu trabalho, seja em suas discotecagens ou em suas produções. Seu primeiro EP “ORI”, lançado recentemente pelo selo MambaRec, é uma experiência sonora intensa, em que camadas de beats se embolam ao máximo. Se quiser ir mais fundo no trabalho do artista, vale conferir seu recente set para o canal HÖR BERLIN, que aí o impacto será certíssimo!

Irmãs de Pau – A regra se tornou clara nos últimos meses: se temos Brunoso no beat, temos Irmãs de Pau no pique. Com o hit “Shambaralai”, as multiartistas Isma Almeida e Vita Pereira se tornaram presença em festas, festivais e trios elétricos pela cidade de São Paulo. A dupla Irmãs de Pau surgiu durante o período de pandemia a partir da amizade de Isma e Vita, duas travestis negras que se conheceram lá em 2014, numa ocupação estudantil, em uma escola da Zona Oeste de São Paulo. Com bom humor e uma acidez na medida, as Irmãs de Pau mesclam funk, hip hop e música eletrônica, como pode ser conferido no disco de estreia “Dotadas”, de 2021, que conta com a participação de nomes como Jup do Bairro, Alice Guél e A Travestis. A história das artistas pode ser conferida no recente curta-metragem “Nóis é Cria!”, de Bruna Coutt e Márcia Barros.

A noite é feita para dançar e barbarizar

Esses cinco artistas que vimos acima podem ser vistos em festas, em palcos, em DJ sets experimentais em locais múltiplos que vão de festivais de música a teatros, passando, claro, pelos velhos galpões da cidade. Nos últimos anos, a noite paulistana teve uma lufada de novas experiências e potencialidades e se fortaleceu novamente como um espaço importante para a circulação de artistas, coletivos e produtores. É um clichê e tal, mas São Paulo é realmente um espaço múltiplo e com possibilidades amplas de circulação e aí estamos falando nas mais variadas frentes. E nisso se repetem os casos de artistas que veem na cidade uma possibilidade de morada para suas obras artísticas e suas existências. Exemplo disso é a cantora Filipe Catto, natural do Rio Grande do Sul e que mora na cidade há 13 anos.

“Diante de um país que a gente sabe como é complicado, machista, LGBTfóbico e misógino – e uma realidade que a gente vivenciou de maneira tão crua nos últimos anos –, São Paulo acabou se tornando um dos poucos lugares viáveis para pessoas dissidentes poderem circular, ter uma rede”, conta Catto. “Culturalmente, pensando em trabalho e mercado de emprego, oportunidades de projeto, São Paulo continua sendo um dos únicos lugares viáveis de se viver para ser artista, o que é uma lástima, eu não acho que isso seja o ideal. E isso que eu amo São Paulo, independente de tudo, me sinto muito bem aqui, acho que é uma cidade extremamente inspiradora, extremamente cosmopolita. E me dá muito orgulho viver nessa cidade que tem uma profusão de arte, que tem esse monte de coisa maravilhosa acontecendo sempre, com seus encontros e a maneira com que ela muda rapidamente a cada pouco”. 

Filipe Catto (Reprodução)

São Paulo tem uma pulsante vida underground de festas, teatros independentes, bares & inferninhos, o que possibilita uma gama de possibilidades artísticas e musicais. O DJ Mirands, residente de festas como a Batekoo e Dando, é natural da Bahia, mas tem grande parte de sua agenda profissional na cidade de São Paulo, local em que mora desde 2015. “A noite tem se renovado constantemente”, explica ele, “e vejo a cena cada vez mais diversa principalmente no que diz respeito a festas independentes. Há um tempo existe um movimento de (tentativa de) valorização de outros tipos de corpos dentro desses espaços, que começou no underground com a criação da Lista Trans, que visa o acesso de pessoas travestis e transexuais em espaços de lazer, e hoje se ampliou, tendo essas pessoas em equipes fixas de trabalho e como DJs e performers em festas muito grandes da cidade. Com essa renovação e a chegada dessas novas pessoas com outras referências sempre temos a oportunidade de presenciar muita experimentação, e isso faz com que essas novas sonoridades acabem sendo valorizadas”, finaliza.

Nesse sentido, enquanto algumas marcas tentam cooptar muitas estéticas e possibilidades artísticas surgidas na comunidade LGBTQIAP+, é interessante perceber como ainda se mantem uma cena artística underground em que o mais importante é a criação artística e os tensionamentos do que é esperado ou não de nós. É óbvio que as coisas não são um mar de rosas e muitos desses artistas ainda sofrem para pagar as contas e fechar no saldo positivo a cada mês, de todo modo é também latente que eles não são nomes de uma só estação, não são produtos midiáticos para uma campanha, mas sim são artistas que colocam em suas obras todas as potencialidades e complexidades de suas existências nessa cidade na qual a “força da grana ergue e destrói coisas belas”.

Nisso tudo, é fundamental que, em determinados momentos, a gente se agarre nessa coletividade enquanto uma comunidade e entenda a importância de criar espaços seguros e de celebração desses artistas e de suas artes. A existência de festas, eventos, mostras e festivais que construam diálogos e potencialidades para a profissionalização e a independência de artistas e produtores é também uma forma de se defender de um mercado que pode ser bem sanguessuga. Pois como disse Leci Brandão, se o sistema descobriu que gay agora vende e dá bom lucro, que esse lucro seja abundante para os nossos!

Renan Guerra é jornalista e escreve para o site Scream & Yell desde 2014. Faz parte do Podcast Vamos Falar Sobre Música e colabora com o site Monkeybuzz e a revista Balaclava.